Andava a queixar-se de algumas maleitas há coisa de um ano. Não tinha luzinhas a piscar, avisando a tipologia da enfermidade. Era à antiga. Apenas emitia uns gemidos estranhos ou começava a tremer furiosamente, abalando o chão da cozinha, quando alguma coisa estava mal. Lá fui tentando aliviar-lhe a dor e adiar o estertor mas, na semana passada, despediu-se com um último suspiro, enquanto o técnico que entretanto chamara numa última tentativa para a curar, me desenganava e lhe dava a extrema-unção.
Preparei-lhe o funeral, em cerimónia simples. Agradeci-lhe, uma última vez, a forma dedicada como sempre se entregou ao trabalho, sem um único lamento. Já sabia que o passo seguinte seria doloroso. Colocava-se de imediato uma questão: como substituir aquela fiel companheira ? Quem estará melhor habilitado para fazer esquecer os bons serviços que a máquina de lavar de linha branca, comprada no saudoso Carrefour me prestou de forma zelosa e eficiente, ao longo de quase duas décadas?
Nesta sociedade da hiperescolha, onde cada marca apresenta uma panóplia diversificada de modelos para cada produto, com o objectivo de penetrar em todos os nichos de mercado, escolher uma máquina é, por vezes, tarefa ciclópica. Principalmente para leigos em novas tecnologias, como eu, que fico com a cabeça a andar à roda, cada vez que vejo luzinhas a piscar num visor, sem saber se aquilo significa que o aparelho está a dar o berro ou em perfeito estado de funcionamento.
Como distinguir o modelo XPTO 17, do seu concorrente, da mesma marca, XPTO 17 SP? Muitas vezes os modelos distinguem-se apenas por pormenores só perceptíveis a especialistas na matéria e não ao consumidor comum.
E como saber se a marca que mais se adequa às minhas necessidades é a ZPLR Hidromatic ou a mais singela (pelo menos em nomenclatura baptismal) ZETA?
Eu sei que há testes comparativos que nos podem ajudar e que podemos pedir a opinião dos amigos mas, na generalidade, cada um sempre enaltece as características da marca e modelo que tem em casa, para justificar o acerto da sua opção. A consulta a amigos também pode ter a vantagem de eliminar à partida algumas marcas mas, caramba, nem os meus amigos são tantos que me permitam uma escolha por amostragem, nem estava na disposição de me colar ao telefone a perguntar-lhes:
“Olha lá, estás satisfeito com a tua máquina de lavar? Parece-te que é o modelo ideal para mim?”
Decidi, por isso, meter-me ao caminho e dirigir-me a uma loja onde a oferta de marcas fosse variada e tivesse aconselhamento técnico na escolha. Fui.
Comecei por deambular entre marcas e modelos olhando para os preços e tentando decifrar o que se escondia por detrás da designação de cada marca e modelo. Ao fim de cinco minutos, pedi a ajuda de um funcionário. Afoito, contei-lhe a história:
“Olhe, vim cá porque a minha máquina pifou e preciso de uma nova, mas não sei o que hei-de comprar. Pode dar-me uma ajuda?”
“Qual era a marca da máquina que tinha?” – perguntou-me o funcionário, certamente já apontado para me indicar a compra de um modelo da mesma marca.
Desiludi-o. Percebi-o na reacção estampada na face, quando lhe respondi “a minha máquina de lavar era de marca branca”. Olhou-me com ar superior de quem vê entrar um pelintra,num estabelecimento onde se vendem produtos com “pedigree” e disse:
“Pois, nós aqui só temos produtos de marca. Se quer uma máquina dessa linha, terá de procurar noutro sítio”.
Perguntei-lhe se sabia onde poderia encontrar uma máquina, igualzinha à minha, porque era isso que queria.
Começou por encolher os ombros e depois, a custo, lá disse que não fazia ideia.
Expliquei-lhe então que, não tendo tempo para andar a procurar um estabelecimento onde vendessem máquinas de marca branca, queria uma máquina que durasse os mesmos 20 anos de vida da defunta.
Escapou-se-lhe um sorriso. “A sua máquina tinha 20 anos? Hoje já não arranja disso. Se aguentar 10, já é muito bom!”
Conformei-me. Pedi-lhe um conselho. Acabou por me indicar três modelos de duas marcas diferentes. Optei por um, que me pareceu adequado às minhas necessidades, e cujo preço era atraente.
Agora tenho lá em casa uma máquina cheia de luzinhas a piscar, que me fazem lembrar o cockpit de um avião. Não percebo para o que servem, nem consigo decifrar os seus sinais. Entreguei essa tarefa à empregada que me pareceu entusiasmada com a nova hóspede, tal a forma carinhosa como a recebeu.
Eu continuo com saudades da minha máquina de lavar de marca branca. Baratucha e fiel.
Os tempos são outros, claro. Vivemos no tempo de um mercado sujeito a grande pressão, onde anualmente desaparecem 8 em cada 10 produtos lançados como novidades, onde em cada 1000 ideias, apenas 35 vêem a luz do dia, e só 19 obtêm sucesso.
A pressão dos mercados alterou profundamente as regras do jogo publicitário que até há cerca de 30 anos se resumia a propostas inocentes como “Omo lava mais branco” ou “Vaqueiro torna tudo mais apetitoso”. Mas alterou também a forma de nos relacionarmos com os produtos e dificultou a forma de fazer as nossas escolhas. Já não procuramos o duradouro. Somos seduzidos pelas novas tecnologias que apenas nos prometem o prazer efémero de comprar hoje a última novidade mas, passados poucos meses, somos obrigados a admitir que temos em casa uma velharia.
Aviso: Hoje é o Dia Mundial da Poupança. Recuperei este texto, que há tempos escrevi para a revista Tempo Livre, porque me parece enquadrar-se dentro do espírito do que deve ser um consumidor sustentável