Sempre fui ave nocturna. Aprendi, desde cedo, que a noite é melhor conselheira.Pelo silêncio que nos permite trabalhar com mais serenidade e convida a meditar e a encontrar-nos, mas também pelo bulício, tão diferente e tão mais diversificado, do rotineiro zumbido diurno dos transportes, dos automóveis ou de gente apressada entrando e saindo dos empregos, onde consome os dias.
Gosto de ver circular transportes públicos quase vazios. Das ruas quase despidas de automóveis e de gente. De tentar decifrar o enigma de homens procurando prostitutas de rua. Dos bêbados com assento fixo em bares, de onde são enxotados depois da saída do último cliente.
Tempos houve em que a noite- já madrugada- terminava num convívio entre jornalistas nas tascas do Bairro Alto. Uma ou outra vez no Parque Mayer entre coristas de revista, whiskeys e alguma boémia.
Nunca fui amante de discotecas. Para dizer a verdade, só lá entrava empurrado por namoradas de ocasião. Foi assim que me tornei frequentador do Stones ou do Ad Lib, únicas discotecas onde ia com algum prazer. Mais pelo convívio, do que pela dança. Sempre gostei de tertuliar à volta de um copo e, já adulto, gostava de prolongar o trabalho, até os primeiros raios de sol dardejarem as janelas de Lisboa.
Não tendo em Lisboa uma casa com um amplo espaço onde receber os amigos, acabei por me tornar co-proprietário de um bar perto do Marquês de Pombal, onde desaguavam figuras do teatro, do cinema, da televisão e das letras que por ali ficavam a fazer horas até que os primeiros assomos do dia os conduzissem aos braços de Morfeu.
A partida para os Estados Unidos - e outras razões que agora não vêm ao caso – ditaram o fim da minha relação com aquele bar que, poucos anos mais tarde, acabaria por encerrar.
Alguns dias depois de regressar a Portugal, Fernando Ferreira da Costa- príncipe de uma tribo são-tomense- desafiou-me a integrar um grupo que nessa noite ia ao bar de uma sua amiga.
O bar era na Graça, chamava-se Botequim e a sua proprietária era… Natália Correia! Eu não a conhecia, a não ser dos discos de poesia que havia em casa dos meus pais e de a ver uma ou outra tarde na SMARTA mas, assim que entrei naquele espaço, percebi que tinha encontrado o meu poiso noturno, no regresso a Lisboa.
O Botequim era, já por essa altura, um local de culto. Espaço exíguo onde apenas cabiam duas ou três dezenas de pessoas, mas que em algumas noites albergava uma centena ou mais. Nessas noites o ambiente de fumo quase não permitia ver o piano de onde se soltavam notas ora melodiosas ora em fúria, tricotadas por Maria João Pires ou António Vitorino de Almeida.
Por essa altura Natália já não era a mulher de beleza esplendorosa que deixava os homens loucos e levava muitos estudantes a ir à SMARTA só para…lhe verem as pernas! Muitos ainda iam lá só para lhe apreciar a beleza física, mas a maioria pretendia partilhar uns momentos de convívio com a mulher desbragada, excessiva, controversa, por vezes petulante a que ninguém ficava indiferente.
O que mais me fascinou de imediato naquele espaço- para além da personalidade vincada de Natália - foi o facto de ali se reunirem pessoas dos mais diversos quadrantes políticos e das mais diversas áreas. Militares de Abril, actores, músicos, editores, jornalistas, poetas, escritores, pintores e políticos para ali convergiam atraídos por uma estranha magia que Natália espalhava em seu redor ou, em alguns casos, em busca da sua protecção para se projectarem.
Durante três anos fui frequentador assíduo do Botequim. Depois voltei a partir mas, sempre que vinha a Portugal , não deixava de passar por lá. Estava em Macau quando Natália morreu. Hoje, não tenho dúvidas que com ela morreu a última tertúlia de Lisboa. O Botequim foi o último espaço em Lisboa onde se reuniam para conversar e discutir abertamente, pessoas tão diferentes como Arnaldo de Matos e Ramalho Eanes, Lurdes Pintassilgo ou Eunice Muñoz, Henrique Neto ou Maria Lúcia Lepecki e muitas outras figuras conhecidas que seria fastidioso aqui enunciar. Em comum, apenas uma admiração enorme por Natália. Embora, nem sempre, fosse uma admiração desprendida ( mas isso, são contas de outro rosário)
Foi por isso com muita curiosidade que assisti na terça-feira, na biblioteca José Saramago, à apresentação do livro de Fernando Dacosta (
O Botequim da Liberdade) de que vos falo aqui.
Lê-lo é fazer uma viagem pela Lisboa dos anos 70 e 80. Um regresso ao passado, ou a descoberta de episódios que Fernando da Costa retirou das páginas do seu Moleskine e, em boa hora nos deu a conhecer. Uma bela homenagem a Natália, mesmo quando discordemos dela.